Para as populações-chave sobra só o estigma?
O maior aumento nos índices de infecção por HIV no Rio Grande do Sul acontece nas faixas etárias mais jovens e, no Brasil, a faixa-etária com maior incidência de infecção por HIV é a de 20 a 34 anos. Por isso, as principais políticas públicas do Estado e do Município de Porto Alegre são voltadas a eles - como o projeto Fique Sabendo Jovem. Entretanto, o Ministério da Saúde e a UNAIDS, órgão das Nações Unidas com a função de criar estratégias de combate à Aids, aponta que a taxa de prevalência da infecção por HIV é maior em determinadas populações, embora a incidência na população geral brasileira esteja estabilizada.
"Traçar um perfil específico da pessoa acometida pelo HIV depende de que olhar estamos fazendo isso, mas a estratégia de enfrentamento é trabalhar com as populações mais vulneráveis. A Aids, na população geral, tem uma prevalência de 0,4%. Nessas populações-chave, a prevalência é muito maior, chegando, em alguns casos, a 30%", explica a coordenadora do Serviço de Atendimento Especializado Santa Marta, Daila Raenck.
HIV x Aids: entenda a diferença
Inseridos em contextos sociais que aumentam suas vulnerabilidades, as chamadas populações-chave são: gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), pessoas trans, usuários de drogas, pessoas privadas de liberdade e profissionais do sexo. O que acontece é um ciclo: a informação sobre as formas de prevenção nem sempre chega até essas populações. Ao mesmo tempo, as pessoas já infectadas, por diversos motivos, muitas vezes não conseguem acessar ou se manter em tratamento e por isso não atingem a carga viral indetectável. Essas populações-chave, conforme o relatório mundial da UNAIDS, representaram 45% de todas as novas infecções por HIV em 2015.
O vice-presidente do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids do Rio Grande do Sul (Gapa RS), Carlos Alberto Duarte, relembra as ações brasileiras de sucesso, como a diminuição da transmissão vertical e o aumento da qualidade de vida das pessoas soropositivas. No entanto, destaca: "A gente vê que isso não é para todo mundo, porque as populações mais vulneráveis estão sendo massacradas. Isso tem muito a ver com o modo como essas pessoas são tratadas nos serviços de saúde, além da falta de políticas públicas".
Existem várias políticas públicas sendo colocadas em prática hoje em Porto Alegre, inclusive no que diz respeito a essas populações. Mas a coordenadora técnica da seção de Infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), HIV/Aids e Hepatites Virais de Porto Alegre, Fabiana Ferreira, é enfática ao dizer que a prioridade, nesses casos, é o diagnóstico e o tratamento, trabalhando "na medida do possível com informação e prevenção". Ela relata ainda que a maior dificuldade nesse sentido é construir vínculos com determinadas populações: "mantê-los no tratamento é o desafio central", complementa.
Quando se fala nos altos índices de infecção por HIV e mortalidade por Aids em Porto Alegre, é impossível não apontar as contribuições das Organizações Não Governamentais e mesmo explicar o seu papel. Para a presidente do Gapa RS, Carla Almeida, a principal conquista do grupo foi trabalhar todas as questões transversais à epidemia. "Preconceito, pobreza, racismo, machismo e homofobia são determinantes na hora de discutir saúde pública porque vulnerabilizam essas populações para uma possibilidade maior de infecção do HIV, mas também uma possibilidade menor de tratamento, o que faz com que os índices aumentem", analisa Carla.
Além das populações-chave, que são o foco das ações em nível federal, há ainda uma segunda categoria de pessoas, ainda mais complexa, que exige atenção redobrada no que diz respeito às políticas públicas, serviços de saúde especializados e desenvolvimento de grupos de apoio e acompanhamento: as chamadas populações prioritárias, que estão mais ligadas às dinâmicas locais das endemias de HIV/Aids. Identificar quais são as populações prioritárias em cada município, região ou estado significa observar quem mais é afetado desproporcionalmente pelo HIV na comparação com a população geral. Em Porto Alegre, pode-se destacar, por exemplo, a população de adolescentes e jovens e a população de rua.
Grupo de risco, população-chave ou vulnerável?
No início da década de 80, a comunidade LGBT ficou conhecida como um "grupo de risco" para a epidemia de HIV/Aids. Hoje, sabe-se por exemplo que o sêmen masculino tem maior carga viral que a secreção feminina e, por isso, o contágio entre mulheres lésbicas sequer é registrado no Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde. Com o aumento na incidência do vírus entre homens e mulheres heterossexuais, a nomenclatura foi substituída pelo termo “comportamento de risco”, que também apresenta problemas.
Segundo Carlos Alberto Duarte, vice-presidente do Gapa RS, "falar em população de risco no passado pressupunha que houvesse uma população sem risco, e isso está provado que não é assim. Comportamento de risco, por outro lado, é muito ligado à população de risco, porque, na verdade, não são as relações em si que são de risco, de forma isolada". Duarte esclarece que a vulnerabilidade de algumas populações fazem dela mais propensas à infecção: "Isso porque muitas vezes as pessoas não tem condição de acessar a informação, com educação sexual desde cedo, nas escolas, nas famílias." Por essas razões, Duarte prefere falar em populações vulneráveis, "porque até o termo 'populações-chave' parece culpabilizar essas pessoas", comenta.
Qual tem sido o nosso papel, enquanto sociedade, em relação aos índices de HIV entre as populações mais vulneráveis?